Lisboa Song

A Sextante acaba de lançar Lisboa Song, um livro que junta as palavras de António Mega Ferreira às imagens de Amy Yoes. Embora nem sequer se aproxime da sensação de ter o livro, podem dar uma espreitadela à versão digital que se encontra no site da artista norte-americana.

Amy Yoes

Ruas, a cidade são ruas, ou o seu desenho, ou o seu segredo. Confundem-se as sombras, há mais sombras (reparaste?) no Verão, quando o sol se dissolve em luz, ergues a cabeça à procura do calor, dançavam dois pombos extenuados sobre o frontão de um teatro, tinhas descido ao centro, meia dúzia de rapazes esparvoavam numa esquina, eram duas da tarde, nessa altura, dizias, e os teus olhos espantavam-se, nessa altura a cidade pára, percebes, detém-se, mas não, emendaste, não se detém, a cidade está ali desde sempre, para sempre, já sei, dirás, é uma cidade nostálgica, e tu abanas a cabeça, dizes, não, não percebes, a cidade é um coração de pedra, erguida sobre a pedra, sobre pedras, o que adivinhas é apenas o gesto que a talhou, encosta o ouvido ao calcário quente de vento, ouvirás uma voz secreta e silenciosa, eu sei, dirás (eu impacientava-me com os teus paradoxos), e tu, agora segura, eu sei que não se ouve a voz do silêncio, eu quero dizer é que na pedra podes sentir a génese do som, primeiro ainda nada murmura, é um momento antes, apenas um momento, esse sim quase suspenso, e depois, muito levemente, a pedra segreda qualquer coisa, não, não segreda, de facto a pedra rumoreja só, é uma cantilena antiquíssima que traz dentro de si, no lume que a consome por dentro, dentro de si, por dentro, percebes? A pedra sangra. António Mega Ferreira