crónica de uma mancha anunciada
A Mancha Humana, de Philip Roth, marcou – a par da presença d’ele – os 15 dias que passei com o mar. Ou melhor, a Mancha Humana não me “marcou” simplesmente porque “marcar” é uma palavra muito leve. O livro de Philip Roth arrasou-me, atirou-me às ondas, cuspiu-me para os rochedos e enterrou-me na areia. Mas vamos com calma.
O erro, o terrível erro, quase comparável ao pavoroso ‘Spooks’ de Coleman Silk, aconteceu quando decidi que entre os livros que me acompanhavam, só um iria para a praia e os outros seriam para ler na casa de férias. A Mancha Humana acabou por ser o sacrificado. Foi uma decisão complicada: de todos os livros qual é que deveria danificar mais? Depois de retirar os que pertenciam à biblioteca, a escolha recaiu sobre a obra de Philip Roth porque era um dos mais volumosos e, por isso, pensei ingenuamente que poderia aguentar as duas semanas de leitura exclusiva na praia.
Mas não, o aldrabão acabou logo ao fim de poucos dias. Tudo bem, às vezes engano-me, era só passar ao livro seguinte e sacrificar outro ao mau trato da areia e do sol. Pois aqui é que o demónio (porque é disso que se trata) torce o rabo. A Mancha Humana não é um livro, é o Belzebu. Porque me esvaziou por completo e não me deixou ler mais nada. Depois d’ A Mancha Humana existe mais literatura? Não, sabe tudo a pouco. Mais nenhum outro livro me prendeu a atenção, ainda espreitei aqui e ali, mas continuei seca por dentro. Haveria vida depois d’A Mancha Humana? Muito dificilmente. Não estava preparada, já tinha lido muito sobre o Philip Roth mas ninguém me avisou do nevoeiro literário que se preparava para manchar os meus dias de leitura.
Hoje, regressada das férias, pego na Mancha e continuam a cair-me grãos de areia. Nalgumas páginas encontro nódoas de protector solar, factor 30. Folheio-o e sinto o cheiro delicioso de creme misturado com maresia. É a isto que venho reduzida. O Belzebu cheira a creme e maresia. Mais nada. Estupidamente a mais nada. Talvez, quando recuperar a capacidade de ler, consiga escrever sobre o livro. Por enquanto, nada. Só creme e maresia.
[imagem]: Philip Roth